segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O parque dos ídolos

Impossível seria iniciar um novo ano sem reflectir no significado daquele que nos deixa.

O mundo que define o ser de cada um de nós é um mundo de lugares e de épocas (isto nada tem a ver com espaço e tempo, categorias que serão mais apropriadas para outro tipo de conversa). O nosso ser-em-comum presente vive na transição de duas épocas do mundo e o ano que ainda corre foi o último ano que as juntou: doravante estaremos a viver numa época nova.

O que caracteriza a época nova ninguém o saberá dizer, por enquanto só pode ser caracterizada pela negativa.

A época antiga caracterizou-se pelo progresso material associado a uma civilização de tipo industrial, em que o trabalho humano foi sendo progressivamente esvaziado: primeiro, através da substituição da força muscular pela energia-mercadoria aplicada às máquinas; depois, através da automatização da organização industrial, da gestão dos processos e do conhecimento.

A época antiga teve as suas fases sucessivas e criou e destruiu praticamente tudo o que era familiar para as actuais gerações mais velhas. Criou e destruiu o emprego, criou e destruiu as energias fósseis, criou e destruiu a segurança ambiental, criou e destruiu a prosperidade material, criou e destruiu a protecção na infância e na velhice, criou e destruiu a saúde das pessoas e dos lugares, criou e destruiu os sistemas educativos, criou e destruiu a informação, criou e destruiu o dinheiro, criou e destruiu o Estado, criou e destruiu a confiança nas instituições bancárias e securitárias, criou e destruiu as classes médias, criou e destruiu o sonho da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Não tenho saudade da moribunda época antiga. Toda ela foi construída sobre os alicerces do monismo da metafísica e destruída pelo mesmo princípio unificador e indiferenciador anunciado na globalização. A grande massa de desapossados da Terra sente-se hoje, novamente, expulsa do Paraíso Prometido.

Não sei o que o ano novo trará, sei apenas que estamos já numa época nova. O que ela virá a ser ninguém o sabe. À partida é de supor que se manterá ainda a longo prazo a tendência para haver mais desemprego, mais fome, mais pobreza, mais exclusão e maior desigualdade. Aumentarão as "crises", as calamidades ecológicas, as pandemias e o número das doenças conhecidas, as guerras, os apagões energéticos, os terrorismos e a radicalização da violência urbana. As pessoas passarão cada vez mais a desconhecer a vida ao ar livre e a relacionar-se com a realidade através de ecrãs e de comandos.

Isto não é uma visão apocalíptica do futuro; é apenas a verificação daquilo que a época antiga nos deixou em testamento. O futuro ainda é, se o quisermos, a exploração de todas as possibilidades.

O Parque dos ídolos (Klee, 1939)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O mundo hipócrita em que vivemos

Dois acontecimentos recentes vieram acalmar, por artes de prestidigitação, os ânimos inquietos: a eleição de Barak Obama e a discussão no Parlamento do OGE para o ano vindouro.

Todos sabemos, e até os seus próprios correlegionários, que, pela sua incontrolável estupidez, Bush abriu a caixa de Pandora, e que de lá saíram todos os males que arrasaram o mundo comprometendo até a própria sobrevivência deste. Embora tente recalcar esse pensamento, a humanidade tem a vaga ideia de que a sua Idade de Oiro acabou. Bush entregou a vitória direitinha a Obama e o mundo respirou de felicidade como se a crise tivesse acabado definitivamente. Toda a gente sabe que não, mas faz de conta. O difícil está para vir, faz lembrar a esperança depositada em Sócrates aqui no rectângulo, após o desastre de Santana Lopes. Com tudo minado, pouco a fazer e os WASP*s ressabiados, Barak vai ter dentro de meses manifestações nas ruas, possíveis atentados e o seu pretérito (a garganta funda de uma Monica Lewinsky negra ou umas trapalhadas com as suas habilitações literárias) passado a pente fino na imprensa.

Aqui o Governo faz-nos crer que fintámos a crise e que a sua proposta é a melhor do mundo. A Oposição diz que é o contrário: à esquerda , que é demasiado e muito pouco; à direita, que é muito pouco e demasiado.

O povo ilude-se. Os governos e os parlamentos não mandam nada. O poder está, à escala mundial, nas mãos das empresas e da imprensa que detêm o controlo do Estado, das forças armadas, das igrejas e dos meios de comunicação social.

A democracia faliu quando os cidadãos foram despejados e substituídos pelos contribuintes.




* WASP = White Anglo-Saxon Protestant.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A matéria: a visão poética.


Num postal anterior coloquei lá este quadro sem qualquer explicação ou legendagem. Melhor, limitei-me a dizer que "Há dois tipos de partículas elementares, os fermiões e os bosões. Deixando de lado as complicações das estatísticas quânticas e simplificando: os fermiões (quarks e leptões) têm massa; Os bosões - fotão, gluão, W e Z - são portadores de força."

Acho que está na altura de o fazer e aproveito para falar dos hadrões. Ao fazê-lo vamos estar a falar de matéria, pelo menos nos termos em que esta é referida na Física Quântica como a conhecemos actualmente.

Tudo o que acontece no Universo material tem por base quatro forças: a força gravitacional, que explica a atração entre os corpos macroscópicos; a força electromagnética, interveniente ao nível da estrutura atómica; a força fraca, responsável pela desintegração radioactiva, e a força forte, que mantém a coesão dos núcleos dos átomos.

A Física quântica substituíu o termo “força” pelo termo “interacção” e descreve as interacções como troca de partículas. Os portadores destas forças são as seguintes partículas:

1. Interacção gravitacional, o gravitão.

2. Interacção electromagnética, o fotão.

3. Interacção fraca, os bosões W+, W- e Z0

4. Interacção forte, 8 gluões

A matéria é composta de leptões e quarks: Os leptões mais conhecidos são o electrão e o neutrino; a cada leptão corresponde um anti-leptão. Há seis tipos de quarks definidos pelos seus “sabores”, constituintes dos hadrões, dos quais o u e o d estão na composição do protão e do neutrão (e, por conseguinte, 6 anti-quarks):

  • u (up)
  • d (down)
  • s (strange)
  • c (charm)
  • b (bottom)
  • t (top)

Os quarks estão “aprisionados” em “gaiolas” chamadas hadrões em resultado da força forte. Os hadrões são partículas compostas (não elementares) que “sentem” a força forte. A família dos hadrões engloba:

  • os bariões (que são fermiões) constituídos por 3 quarks cada um de sua “cor”. Por exemplo, o protão, o neutrão e o anti-protão.
  • os mesões (que são bosões) constituídos por um quark e um anti-quark. Por exemplo, os piões, os mesões rho.

Tudo extraordinariamente simples mas permanecem mistérios por resolver: o que é feito da anti-matéria que deveria existir algures e que desapareceu (assimetria bariónica)? E o bosão de Higgs, existe afinal? E, se existe, será que o conseguimos encontrar? Será que os Wimps, os hipotéticos constituintes da matéria negra, não querem mesmo interagir com a matéria ordinária? O que quer dizer que o vazio está cheio de energia concentrada? Ai não? Sabias que a massa de um metro cúbico de vazio é igual à massa de 1054 galáxias?

domingo, 26 de outubro de 2008

O que é ser materialista

Sou materialista.

Estou seguro do carácter genuíno desta afirmação: acredito na minha sanidade e estabilidade mental, estou seguro de que essa é a minha convicção e sei que ela resulta de uma opção, de um acto livre e espontâneo baseado unicamente na análise lúcida da minha realidade.

Quanto ao saber o que significa “materialista” isso já é outra coisa! O significado, que urge aclarar, não tem, a princípio, uma definição rigorosa. Basta entender que “materialista” é alguém que a acredita que a realidade é constituída exclusivamente de matéria.

Torna-se o termo “materialista” mais entendível se tiver uma definição na forma negativa: então, ser “materialista” consiste em não acreditar noutra realidade que não seja constituída de matéria, por exemplo, não acreditar na alma espiritual e em puros espíritos. Definido desta forma o materialismo é a rejeição de concepções animistas e espiritualistas. Embora estas concepções estejam geralmente associadas a crenças religiosas e místicas, manifestam-se também em crenças profanas e puramente filosóficas como aquilo que ficou definitivamente consagrado na história do pensamento pela designação de Metafísica.

Em termos etimológicos, Metafísica é aquilo que se separa e se situa além da Natureza (em grego, Physis). A metafísica é, não só um estado de abstracção da natureza, da realidade física, mas também a fonte ou a raiz de um conjunto de imperativos que condicionam e coartam o comportamento e os sentimentos humanos obnubilando a cognição.

Este é um ponto muito importante para compreender o alcance do que é ser “materialista”. Dito de outro modo a afirmação poderia ser formulada dos seguintes modos:

Sou anti-metafísico. Sou naturalista.

Pelo que atrás se disse, e adiante se poderá esclarecer melhor, ser materialista é recusar categoricamente concepções baseadas ou derivadas da metafísica, considerá-las erróneas ou doentias, identificar e medir os estragos provocados em tudo o que é cultura e biologia humanas, desinfectar e extirpar todas as suas manifestações e repor a sanidade e o equilíbrio das emoções, cognições, sentimentos e comportamento humanos.

Nos meus escritos anteriores identifiquei dois vestígios ou traços da acção corrosiva da metafísica, este vírus que cancerígena a cultura humana: o dualismo e o monismo.

O dualismo consiste em pensar a realidade através de pares de termos opostos: matéria-espírito, corpo-alma, céu-terra, tempo-eternidade, bem-mal, verdadeiro-falso.

O monismo consiste em pensar a unicidade como princípio unificador, supremo e soberano, acima das disjunções enunciadas e suprimindo-as: monoteísmo, monarquia, monopólio, monogamia.

O dualismo dilacera os sentimentos humanos, bipolariza as emoções, binariza a lógica. O monismo estabelece a ordem suprema das coisas, a hierarquia dos seres e reduz o homem à condição de súbdito.

O dualismo rompe o homem ao meio e a ferida provocada por essa cesura é a culpa. A culpa denega a auto-estima, incita ao suicídio e ao desespero, promove a insensatez, gera expectativas de resgate e ilusões salvíficas, como a esperança num outro mundo, seja esse outro mundo um Além espiritual ou a utopia de um Estado sem classes.

O monismo é o princípio arrebanhador: a felicidade está em pertencer ao rebanho e em portar-se como animal de rebanho. É admitir que há uma ordem pré-estabelecida e que fora dela tudo é desordem. O Bom Pastor é o que conduz a alma tresmalhada ao rebanho.

Embora o dualismo e o monismo sejam as manifestações mais óbvias e presentes da metafísica, esta não se resume àqueles.

O materialismo, pelo contrário, é unidade e multiplicidade. A unidade, ou rejeição do dualismo, não se pode pensar sem a multiplicidade. O Uno (a “matéria”) não é o Único: É diversidade, é uma harmoniosa desordem, é acaso determinante.

O materialismo não é um estado contemplativo, é um combate. O antiteísmo (o meu antiteísmo já foi objecto de um postal de 26 de Maio p.p. no Tremontelo) é apenas uma das suas expressões. Combater a metafísica é mais do que isso: deus é apenas um sintoma da doença que ataca a humanidade. Para encontrar a cura para a humanidade é preciso conhecer os outros sintomas.

Até lá, há que viver com a nossa parte sã: preservando e gozando o pouco que resta da Natureza, cuidando dos laços que nos mantêm unidos à comunidade das pessoas, sejam estas seres humanos ou animais domésticos.

Voltarei novamente ao tema da “matéria” onde se verá o que é que tem a ver “hadrões” com ladrões...

Certamente mais do que habitualmente se pensa.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A evolução (1)

A terra onde nasci era uma extensa seara que começava na periferia de Benfica, alargava-se por Alferragide e ia espraiar-se nas cercanias de Carnaxide, interrompida pelo Vale do Jamor e as elevações de Linda-a-Pastora e Queijas. Para além, ficava a Cruz Quebrada e o rio-mar. Em sentido perpendicular, esbarrava no Monsanto e, do lado contrário, prolongava-se pelas margens da linha de Sintra: Damaia, Venda Nova, Falagueira, Porcalhota, Mina, Queluz e uma série de outras pequenas povoações que se esfumavam num horizonte de névoa no cimo da qual se erigia o Castelo dos Mouros em Sintra. O meu bairro tinha quatro ruas e não chegava a ter cem prédios com quintal, uns com primeiro andar, outros chalés apenas. Entre as searas serpenteavam estradas muradas a pedra, as azinhagas, e no interior dessas terras amuralhadas topavam-se pequenos palmeirais indiciando a existência de poços com noras e pequenas hortas vegetais.

Com dez anos apenas, e já com o apelo da adolescência, fui andar por outras paragens do mundo, mas voltava amiúde a casa. Vi desaparecerem as searas a pouco e pouco. A pouco e pouco foi aparecendo o bairro de Santa Cruz, foi-se alargando a Damaia, desaparece a Estrada de Alferragide, apareceu a Cova da Moura, o Estrela de África, o Seis de Maio, Fontaínhas. Um emaranhado de estradas abraçou o Jumbo, o Continente, o Aki, o IKEA, a Makro, a Decatlon. A pobreza exposta, mas ensolarada, do Bairro da Boavista e das barracas que bordejavam a estrada até Algés, escondeu-se verticalizada nos sombrios bairros de realojamento.

Passados 60 anos passeio-mo naquele "espaço", mas os lugares que vejo já não são os lugares em que vivi. Os lugares onde vivi estão irremediavelmente perdidos. Tão perdidos como as espécies de que não tenho memória mas em cuja existência acredito face à evidência dos seus fósseis. Pois é tão fóssil o que está enterrado na memória como o que se esconde debaixo de várias camadas geológicas.

É diferente o testemunho de quem não deixou de viver lá: não acordaram um dia e repararam que o seu mundo estava diferente. As diferenças instalaram-se subrepticiamente no seu quotidiano, uma a uma, dia a dia, e passavam-se meses, anos e décadas sem se notar as diferenças. Sem fracturas, soluções de continuidade, rupturas, dilacerações do tecido da realidade. Entraram furtivamente, encostadas nas sombras, sem alaridos, em passo fantasma.



Isto é a evolução: vista de perto, continuidade e mudanças imperceptíveis; vista ao longe, descontinuidade e mudanças radicais. Sem necessidade de planeamento, de desígnio. Tudo obra do acaso.

Darwin estabeleceu a ocorrência da evolução ao nível das espécies vivas e propôs uma explicação plausível sobre como funciona, uma explicação naturalista. Tornou-se ipso factu o inimigo principal e objecto de ódio descarnado dos monistas.

Sugestões de leitura: pesquisar a polémica neo-darwinismo vs. creacionismo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O grande colisor de hadrões

Começaram esta manhã, pelas 07H3O, no C.E.R.N., os primeiros ensaios e testes de um conjunto de experiências que mudarão, num dia qualquer do nosso amanhã colectivo, o conhecimento que detemos sobre o inquietante universo em que vivemos.

O Large Hadron Collider (LHC), um dos maiores colisores de partículas jamais construído, está montado num tunel circular de 27 Kms (o “anel”) escavado 100 metros abaixo do solo na fronteira franco-suiça perto de Genebra. O LHC foi desenhado para acelerar partículas sub-atómicas a velocidades próximas da velocidade da luz e depois esmagá-las umas contra as outras a uma força colossal, o que irá recriar os momentos que se seguiram ao big-bang, a explosão que teria dado origem, há 13,7 milhões de anos, a toda a matéria. Dois dos vários protões disparados em direcção oposta irão colidir nas proximidades de um dos 4 detectores que regista a explosão resultante que libertará uma chuva de partículas e temperaturas 100 mil vezes mais quentes que as do Sol. Os dados registados em cada experiência equivalerão aos de uma câmara digital com 150 milhões de pixeis disparando 600 milhões de instantâneos por segundo. Os resultados serão analisados por uma rede de 60 mil computadores espalhados por todo o mundo cujos filtros rejeitarão a maior parte dos resultados ficando para análise apenas 15 petabytes (o equivalente a dois milhões de DVDs).

Entre os objectivos deste projecto a vários anos, o primeiro visa encontrar uma partícula hipotética que pode ser a chave para resolver uma das muitas questões por resolver: o que é que dá a massa ao universo.

Peter Higgs propôs, num paper de 1964 intitulado Broken Symmetries and the Masses of Gauge Bosons, a existência de um campo através do qual as partículas poderiam passar, como passa uma maçã em açucar caramelizado, arrastando consigo neste processo a massa pegajosa.

Há dois tipos de partículas elementares, os fermiões e os bosões. Deixando de lado as complicações das estatísticas quânticas e simplificando: os fermiões (quarks e leptões) têm massa; Os bosões - fotão, gluão, W e Z - são portadores de força. Ora, de acordo com a teoria prevalecente, as partículas adquirem a sua massa através de interacções com um campo transportado pelo hipotético novo tipo de bosões, o bosão de Higgs.



Para desgosto do próprio Higgs, que é ateu, o bosão de Higgs também veio a ser conhecida por “partícula de Deus”, alcunha que parece ter degenerado de Goddamn particle por nunca ter sido provada a sua existência.

Mas a questão não é descobrir se a partícula existe ou não. O importante é um certo espírito de abertura que caracteriza a demarche científica: estar sempre preparado para ser surpreendido pela natureza. O Professor Stephen Hawking considera até que seria preferível que se demonstrasse a sua não existência obrigando os cientistas a repensar as teorias vigentes. E apostou 100$ em como o Higgs não seria encontrado...

Em pano de fundo, outro dos objectivos mais ambiciosos desta experiência é descobrir novas pistas sobre a estrutura do universo. Sabe-se actualmente que a material ordinária, constituída por estrelas e planetas, apenas ocupa 4% do Universo, sendo a parte restante distribuída entre a matéria escura (23 %) e a energia escura (73 %). [Ver neste blogue: o lado escuro da vida (24-10-2006) e matéria escura (11-04-2007)]

Nada melhor do que ouvir as explicações dos próprios técnicos do CERN:



O projecto gera à sua volta uma série de controvérsias, geralmente de tom alarmista e catastrofista, como a de que virá a ser a causa do fim do mundo, já que a experiência poderia originar um pequeno buraco negro que engoliria o planeta. Porém, os grandes problemas do projecto são de nível técnico e financeiro, como os relacionados com o sistema de refrigeração e o consumo brutal de electricidade.

Esperemos que com este projecto seja dado mais um passo na luta contra o pensamento dogmático, sensacionalista e supersticioso.

Perdido,
algures em África.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

A criação

A monotonia de ser único. A criação é um momento de desenfado – deus, enfadado da sua interioridade, exterioriza-se.

E deus viu que assim era bom. Porque naquele momento sucedeu o que é impensável acontecer a um deus, a experiência da finitude.

No último dia da criação, deus contemplou e estabeleceu e santificou um período de descanso.

Deixou-se adormecer, experimentando um novo estado de tranquilidade, e murmurou: “eu sou o que sou”.

No criador, no artista, o eu é o eu e os outros.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Livro de visitas

Os monos” (leia-se mônos) é o termo jocoso por que Perdido execra o monismo nas suas principais variantes, a saber: o monoteísmo, a monarquia, o monopólio e a monogamia. O monismo é o império do unitarismo pela defecção da variedade.

O monismo é uma espécie de pirâmide em que a contração do diverso no uno aumenta da base para o topo (processo de apropriação bottom-up) e se justifica no sentido inverso (processo de justificação top-down):

A monogamia é o processo unitarista mais elementar e significa “uma mulher para um homem”. Perdido não está propriamente a pensar na monogamia como algo que se possa opor à poligamia. Pelo contrário, a monogamia reforça a apropriação das mulheres que historicamente se começou através da poligamia. Com efeito, monogamia e poligamia opõem-se a monandria e poliandria que seriam, se tal existiu, um processo de apropriação inverso. Perdido pensa que a monogamia apenas permitiu um melhor controlo da mulher pelo homem do que a poligamia, não se afastando ambas da mesma essência. E que a monogamia conduz directamente à misoginia.

O monopólio tem uma natureza diversa pois visa a concentração de toda a riqueza nas mãos de um único detentor. Ao contrário da mulher a riqueza não tem singularidade, é um bem acumulável e fluido. A lógica do monopólio é a acumulação. Até hoje, traduziu-se em exploração da força do trabalho. No futuro, em que todo o trabalho será executado por máquinas, traduzir-se-á no extermínio (quase) completo da humanidade a favor da sobrevivência de uns poucos, os hiper-ricos.

A monarquia virá a ser todo o poder concentrado num estado único à escala mundial, provavelmente exercido sem acção humana e controlado pelo patriarca dos detentores do monopólio. Será a realização perfeita do “L’État c’est Moi”, do Quarto Reich. No passado e no presente, a monarquia camuflou-se sob as diferentes capas de oligarquia, tirania, monarquia hereditária, império e republicanismo. Todos estes regimes foram intervalados por períodos revolucionários em que o povo (a diversidade) se bateu pela apropriação do poder para a esfera do público (Res Publica). Todas as revoluções sossobraram no monarquismo com a apropriação privada da coisa pública. Não importa que os interesses privados se baseassem numa lógica de casta, de família, de interesse económico, de classe social, de corporação profissional ou outra qualquer. Fosse qual fosse o interessado, o regime era edificado para proteger o interesse que o sustentava. A democracia representativa é, no presente, a forma menos óbvia, mas a mais eficaz, de subtrair o poder ao povo de administrar a coisa pública e depositá-lo nas mãos de uma clique privada (partido, interesses, etc.). E é eficaz não propriamente pela eficiência do seu simulacro, as eleições. É eficaz porque revelou-se a forma mais rápida de subtrair o público para alargar o privado (“menos Estado”), confinando o público a meia dúzia de instrumentos de repressão: impostos e tribunais. As polícias, as milícias e os exércitos, esses vão desaparecendo também na vertigem das privatizações.

O que colocar no topo? Que cereja espetar no bolo? O que virá a ser a rolha desta garrafa de champanhe? O monoteísmo! O monoteísmo é o monopólio da divindade assacado por um deus. Fará isto sentido? É claro que faz todo o sentido: a melhor maneira de justificar o monismo no mundo existente, no mundo material, no mundo que conhecemos, é explicá-lo como um reflexo de um mundo monista de fantasia, de um mundo de natureza espiritual, de um mundo que não conhecemos, mas que nos é prodigiosamente revelado. A re-ligião, fundada na re-velação, explica o inexplicável e torna suportável todo o sofrimento humano. Quando o homem sofre (execuções em série, catástrofes naturais, epidemias, doença, fome à escala planetária, destruição ou esbanjamento dos recursos) é para expiar um pecado desconhecido e para merecer um mundo alternativo que lhe é oferecido. A mulhe subordina-se ao homem como a igreja a cristo. Todo o poder vem de deus.

Perdido é de opinião que a ideia de deus único é o pensamento mais execrável jamais produzido em toda a história da humanidade, quer se trate do homem das barbas ciumento que castiga o seu povo eleito num acesso de fúria descontrolado, quer na forma da abstração moderna do inteligente desígnio.

Os textos aqui reproduzidos são apresentados cronologicamente segundo o seu aparecimento em O Tremontelo. São textos de natureza diversa, sem fim condutor ou unidade aparente. São fruto da “pesquisa errática” que Perdido tão acerrimamente defende.