domingo, 26 de outubro de 2008

O que é ser materialista

Sou materialista.

Estou seguro do carácter genuíno desta afirmação: acredito na minha sanidade e estabilidade mental, estou seguro de que essa é a minha convicção e sei que ela resulta de uma opção, de um acto livre e espontâneo baseado unicamente na análise lúcida da minha realidade.

Quanto ao saber o que significa “materialista” isso já é outra coisa! O significado, que urge aclarar, não tem, a princípio, uma definição rigorosa. Basta entender que “materialista” é alguém que a acredita que a realidade é constituída exclusivamente de matéria.

Torna-se o termo “materialista” mais entendível se tiver uma definição na forma negativa: então, ser “materialista” consiste em não acreditar noutra realidade que não seja constituída de matéria, por exemplo, não acreditar na alma espiritual e em puros espíritos. Definido desta forma o materialismo é a rejeição de concepções animistas e espiritualistas. Embora estas concepções estejam geralmente associadas a crenças religiosas e místicas, manifestam-se também em crenças profanas e puramente filosóficas como aquilo que ficou definitivamente consagrado na história do pensamento pela designação de Metafísica.

Em termos etimológicos, Metafísica é aquilo que se separa e se situa além da Natureza (em grego, Physis). A metafísica é, não só um estado de abstracção da natureza, da realidade física, mas também a fonte ou a raiz de um conjunto de imperativos que condicionam e coartam o comportamento e os sentimentos humanos obnubilando a cognição.

Este é um ponto muito importante para compreender o alcance do que é ser “materialista”. Dito de outro modo a afirmação poderia ser formulada dos seguintes modos:

Sou anti-metafísico. Sou naturalista.

Pelo que atrás se disse, e adiante se poderá esclarecer melhor, ser materialista é recusar categoricamente concepções baseadas ou derivadas da metafísica, considerá-las erróneas ou doentias, identificar e medir os estragos provocados em tudo o que é cultura e biologia humanas, desinfectar e extirpar todas as suas manifestações e repor a sanidade e o equilíbrio das emoções, cognições, sentimentos e comportamento humanos.

Nos meus escritos anteriores identifiquei dois vestígios ou traços da acção corrosiva da metafísica, este vírus que cancerígena a cultura humana: o dualismo e o monismo.

O dualismo consiste em pensar a realidade através de pares de termos opostos: matéria-espírito, corpo-alma, céu-terra, tempo-eternidade, bem-mal, verdadeiro-falso.

O monismo consiste em pensar a unicidade como princípio unificador, supremo e soberano, acima das disjunções enunciadas e suprimindo-as: monoteísmo, monarquia, monopólio, monogamia.

O dualismo dilacera os sentimentos humanos, bipolariza as emoções, binariza a lógica. O monismo estabelece a ordem suprema das coisas, a hierarquia dos seres e reduz o homem à condição de súbdito.

O dualismo rompe o homem ao meio e a ferida provocada por essa cesura é a culpa. A culpa denega a auto-estima, incita ao suicídio e ao desespero, promove a insensatez, gera expectativas de resgate e ilusões salvíficas, como a esperança num outro mundo, seja esse outro mundo um Além espiritual ou a utopia de um Estado sem classes.

O monismo é o princípio arrebanhador: a felicidade está em pertencer ao rebanho e em portar-se como animal de rebanho. É admitir que há uma ordem pré-estabelecida e que fora dela tudo é desordem. O Bom Pastor é o que conduz a alma tresmalhada ao rebanho.

Embora o dualismo e o monismo sejam as manifestações mais óbvias e presentes da metafísica, esta não se resume àqueles.

O materialismo, pelo contrário, é unidade e multiplicidade. A unidade, ou rejeição do dualismo, não se pode pensar sem a multiplicidade. O Uno (a “matéria”) não é o Único: É diversidade, é uma harmoniosa desordem, é acaso determinante.

O materialismo não é um estado contemplativo, é um combate. O antiteísmo (o meu antiteísmo já foi objecto de um postal de 26 de Maio p.p. no Tremontelo) é apenas uma das suas expressões. Combater a metafísica é mais do que isso: deus é apenas um sintoma da doença que ataca a humanidade. Para encontrar a cura para a humanidade é preciso conhecer os outros sintomas.

Até lá, há que viver com a nossa parte sã: preservando e gozando o pouco que resta da Natureza, cuidando dos laços que nos mantêm unidos à comunidade das pessoas, sejam estas seres humanos ou animais domésticos.

Voltarei novamente ao tema da “matéria” onde se verá o que é que tem a ver “hadrões” com ladrões...

Certamente mais do que habitualmente se pensa.

2 comentários:

Justine disse...

Então já somos dois...:))
(excelente texto)

Rafael disse...

Cara gostaria de conversar com você mais sobre isso, materialismo, metafísica, etc..